Entre a terra e o ar

janeiro 25, 2017

Sibélia Zanon
 
A disciplina não tem uma boa fama. E ela pode mesmo incomo­dar porque, inicialmente, qualquer tipo de disciplina parece corporificar a quebra de um padrão de acomodação. Ela representa a exigência de que uma energia se precipite para fora, em forma de ação concreta. Quando falo aqui de disciplina, refiro-me à capacidade de se ter constância e de se manter concentrado em determinadas tarefas que pareçam ter relevância ou que este­jam associadas a uma meta.

 

O ortopedista da minha família, especiali­zado em coluna, conta que aprendeu a disciplina com seu pai. Quando criança, o pai pilotava e o levava junto. O menino ficava cansado de tanta demora para a brin­cadeira começar. Antes do voo, seu pai checava todos os itens relacionados à segurança pessoalmente. O menino tentava apressá-lo e o pai dizia: Nunca me aconteceu nada no ar, porque eu cuido das coisas na terra.

 

Assim como há disciplinas e disciplinas, também há pessoas e pessoas. Há aquelas natural­mente mais regradas, concen­tradas e disciplinadas, e há outras naturalmente menos sistemáticas. E nisso tudo não há certo e errado, bom e ruim, nenhuma receita padrão universal. Uma pitada de indisciplina pode colocar um pouco de arte na vida, e cada um vai ter de descobrir quanta e que tipos de disciplina ou indisciplina cabem no seu pacote cotidiano.

 

Fato é que enxergamos e recla­mamos do lado incômodo da disci­plina quando estamos guerreando com um objetivo, quando queremos mudar algo ou alcançar uma meta específica, mas não conseguimos ter a força que impulsione a mudança dese­jada. Aquela mudança não faz ainda parte de quem somos e, para que passe a fazer parte, haverá um caminho de experimentação e conscientiza­ção que tem seu custo.

 

A forma de se alimentar ou os exercícios físicos são exemplos frequentemente relacionados à disciplina. Segundo Flavio Passos, pesquisador em nutrição e gas­tronomia saudável: “Disciplina é liberdade, um poeta disse uma vez. E de fato a conquista de disciplina te liberta dos vícios que te prendem a comportamentos não construtivos. Não se deve buscar a disciplina rígida porque quando você puxa demais a corda do violão, ela arrebenta. Ao mesmo tempo, se você não tem nenhuma disciplina, a corda do violão fica frouxa e aí o violão não toca. A disciplina que é útil é aquela que não gera tensão e nem sensação de privação, mas que te mantém no foco daquilo que você quer realizar”.

 

Um aspecto interessante, que talvez colabore para que rejeitemos a disciplina, é que aprendemos, desde pequenos, a esperar tudo o que é bom e feliz do extraordinário (férias, viagens, o dia do casamento, o salto de paraque­das, caviar, paixão), mas é no ordinário (rotina, trabalho, feijão, repetição, afeto) que a vida se constrói. E talvez essa seja a grande e maior lição embutida em qual­quer disciplina que decidirmos agregar à vida: reconhecer, aceitar e aprender a lidar com o fato de que precisamos fazer do ordinário e do coti­diano algo que valha a pena.

 

Em Walden – a vida nos bosques, Henry David Thoreau escreve: “Temos de aprender  a redespertar e nos manter despertos, não por meios mecânicos, mas por uma infinita expectativa da aurora, que não nos abandona nem mesmo em nosso sono mais profundo. Desconheço fato mais estimulante do que a inquestionável capacidade do homem de elevar sua vida por um esforço consciente.” 
 É verdade que todos precisamos de uma pitada do extraordinário, mas ela vai fazer mais sentido se tivermos uma base de construção cotidiana forte e se soubermos que tudo é conquistado, que existe algum tipo de exigência e de persistência para chegarmos a um objetivo e que é preciso cuidar das coisas na terra para só depois conseguir voar.



Leia Também

Movimento do Natal

dezembro 23, 2025


Maria de Fátima Seehagen

O número de dias que antecedem o Natal aumentou! O movimento da maioria das pessoas em torno desta data, também... Parece urgente iniciar as celebrações mais cedo. Uns correm atrás de presentes, outros atrás de comidas, outro tanto se prepara para as férias e para rever os parentes e amigos queridos...

Na mídia enormes papais-noéis invadem todos os horários publicitários, prometendo as mais diversificadas sensações...

Leia Mais
O VAGA-LUME - EDIÇÃO 73

dezembro 22, 2025

Tocar a vida com cuidado: escutar e ser escutado, apoiar e ser apoiado. Fortalecer a colaboração em vez da competição. Cuidar de si — do corpo ao pensamento — para que a própria potência possa expressar-se. O ato de cuidar sustenta a base da vida e atravessa a existência inteira, de forma visível e também invisível, tecendo redes interdependentes de nutrição e afeto.

Leia Mais
Naturalmente aprendizes

dezembro 18, 2025


Daniela Schmitz Wortmeyer

Ao observar os primeiros passos de uma criança, vislumbramos princípios que norteiam o desenvolvimento durante toda a vida. Para aprender a caminhar, é preciso passar por várias etapas: desde os primeiros esforços para erguer a cabeça, sustentar o corpo na posição sentada, rastejar pelo solo, engatinhar, até o ensaio dos primeiros passos… Trata-se de um processo que envolve experimentação, tentativas e erros, em que as capacidades da criança vão sendo gradualmente desenvolvidas. Seus esforços costumam ser acolhidos com naturalidade, compreensão e apoio, e cada nova possibilidade explorada se torna motivo de alegria.

Com o passar do tempo, porém, passamos a enfatizar certos indicadores de “sucesso”, deixando de valorizar o…

Leia Mais