“É de pedra em pedra que se faz um edifício. O mesmo se dá com a atividade do homem.” Roselis von Sass, Revelações Inéditas da História do Brasil
Um dos maiores ossos do corpo humano, o fêmur, demora cerca de seis semanas para cicatrizar quando fraturado. Um fêmur de 15 mil anos, encontrado numa escavação arqueológica, chamou a atenção de antropólogos. O osso humano cicatrizado indicava que alguém havia protegido aquela pessoa até a cura, apontando para a força dos agrupamentos humanos e o cuidar.
Todos somos vulneráveis e nos sentimos mais ou menos inseguros em certos momentos ou contextos – tanto no corpo como na alma. Buscar a própria inteireza implica em enxergar o todo, incluindo o que pode parecer insuficiente, o que falta ou fere.
A palavra vulnerabilidade vem do latim vulnus, que significa ferida. Quando estamos inseridos numa cultura que valoriza o sucesso, a eficiência extrema, o infalível, há o perigo de cultivarmos uma estrutura de artificialidade com alicerces frágeis. Falar sobre vulnerabilidades em tais espaços pode ser associado a revelar fraqueza, gerando vergonha ou o risco de não se encaixar ou de não ser aceito.
Fingir que a vulnerabilidade não existe, no entanto, não faz com que ela desapareça. E quando a ferida não se mostra é mais difícil curá-la – ela pode silenciosamente aumentar de tamanho. Um grupo ou ambiente que rejeita a vulnerabilidade nega a trajetória pessoal de cada um com suas singularidades e acaba por gerar uma falsa sensação de segurança, estabelecida numa base de prisões e imobilidade.
Fato é que não estamos todos no mesmo lugar, no mesmo patamar e nem vivendo as mesmas histórias. Somos seres em trânsito, construindo e reconstruindo o próprio caminho. Por isso, a abertura ao que não é espelho se faz necessária. É justamente por meio das diferenças que reconhecemos no outro novas possibilidades e formas interessantes de lidar com o que se apresenta no cotidiano.
O filósofo espanhol Miquel Seguró diz que somos seres que têm como prerrogativa a capacidade de serem afetados. Imagens, palavras, gestos e objetos nos impactam de forma incisiva, podendo inclusive formar feridas. Expostos à incerteza, à possibilidade de falhar, à incapacidade de controlar todas as variáveis e à transitoriedade da vida, temos o inesperado como companhia.
Mas para Seguró a vulnerabilidade não está conectada apenas à ferida ou a aspectos negativos. Ele considera que sem vulnerabilidade seríamos inertes, não afetando o outro e não nos sentindo também afetados. Dessa forma, a vulnerabilidade estaria também conectada à possibilidade de sermos tocados pela vida e de nos sentirmos comovidos.
Reconhecer a própria vulnerabilidade e trabalhá-la de forma mais aberta pode gerar um senso de humanidade, de conexão com a sensibilidade do outro, de reciprocidade, de intimidade. Pode ser o início de alguma cura. Sendo espaço de instabilidade, a vulnerabilidade também é convite para a humildade e para novos aprendizados.
Ao expor a própria vulnerabilidade, a recepção e a qualidade da escuta têm papel importante para promover segurança. O ambiente pode ter função amparadora, acolhendo a coragem de sermos como somos e a autenticidade de cada um.
“Dar desinteressadamente, ajudar onde for necessário, ter compreensão pelo sofrimento do próximo, bem como por suas fraquezas, chama-se receber (…)”, escreve Abdruschin em Na Luz da Verdade. Para além das questões materiais, é o convívio uma grande oportunidade de doação, exercício de consideração e respeito. Em ambientes massificadores, demasiadamente críticos, de cancelamento social, a escuta e o silêncio podem ser formas de não jogar a primeira pedra, aproveitando a ocasião para observar nossas coleções de pedras, a utilidade que elas podem ter e o que elas contam sobre quem somos.
Assim, o cuidado pode crescer e ganhar status como máximo valor da humanidade – o cuidar de si, do outro e do entorno. O cuidado como valor fortalecedor de uma cultura, como aspecto relevante e revelador da humanidade que existe em cada um. Cada cuidado como uma pequena pedra, encaixada na construção de uma nova edificação.
“Viver é experimentar exatamente isso: cuidar de uma pequena parte, de modo a agregar ao todo. Qual a nossa colaboração na transformação da energia que nos mantém vivos? Qual o melhor encaixe que podemos fazer de nós mesmos dentro de um sistema que já trabalha, por natureza, de forma colaborativa?”
Sibélia Zanon