Olhar que espia

outubro 15, 2019

Livro "Espiando pela Fresta", de Sibélia Zanon

Espiando pela Fresta
 
"Quantas vezes ao chegar em casa, cansada do trabalho ou animada com alguma perspectiva, insegura com o mundo ou cheia de esperança, escuto os passos do Guilherme vindo em minha direção... o riso sonoro iluminando o olhar sem nenhum disfarce. Basta o barulho da porta do elevador se abrindo e eu já posso quase vê-lo porque a voz, a atmosfera e os movimentos todos chegam antes dele próprio. É como se ele estivesse atento ali pela sala e pudesse pressentir minha chegada.
 
Não tivemos muito contato, mas os poucos momentos juntos foram marcantes. Sem a intenção, ele me fez ter a sensação de pertencer a um conjunto, uma sensação quase de proteção e de unidade. Algo solidário, simpático e até divertido.
 
Dizem, porém, que o que é bom não é para sempre. E foi num desses dias que ouvi a outra voz. Voz que se adiantou como pôde, quase não chegando a tempo: 'Não, Guilherme!'. Pude ainda ouvir o Guilherme ficando na pontinha dos pés, as mãos pequenas alcançando as chaves, mas a voz mais forte o intimidou e naquele dia... não nos encontramos. Aquilo aconteceu outras vezes. Senti um misto de completa compreensão e uma pitada de decepção.
 
Sim, se fosse meu filho, certamente eu faria o mesmo. Também considero isso educação. Afinal, ir olhar o morador do apartamento vizinho a cada vez que ele entra ou sai de casa parece invasão de privacidade ou mesmo uma curiosidade desmedida. Mas, será? Fiquei me questionando até que ponto educamos e até que ponto moldamos uma pessoa a ser comedida e pouco espontânea. Até que ponto os comportamentos são socialmente corretos ou não e onde ficam todas essas regras armazenadas...

 Assumimos todas elas como verdade absoluta: quando aparece alguém em tal situação, julgamos que temos de fazer isso. Se alguém fala aquilo, fingimos que não discordamos para sermos gentis. E tudo isso vai criando uma gigantesca massa anônima de presidiários dentro de si mesmos.

É claro que a mãe do Guilherme não é a grande vilã do mundo. Mas os dois me fizeram pensar... A minha porta se abre, a porta dele também. Nos encontramos frente a frente no minúsculo hall do elevador que serve nossos apartamentos. Ele sorri escancarado e maroto.

É bom descobrir vez ou outra, despretensiosamente, que o anonimato da grande cidade ainda guarda Guilhermes. Guilhermes crianças, moços, adultos ou velhos nos mais surpreendentes becos do caminho. Ainda que poucos, eles deixam belas marcas...

Sabe Guilherme, acho que amanhã vou me espelhar um pouco em você e sorrir um pouco mais para a pessoa que eu encontrar no elevador. E imaginar quem ela é, assim como você faz. E não vou sentir medo ou pressa ou indiferença e serei mais curiosa. Vou ter curiosidade suficiente para querer saber quem é aquela pessoa que mora bem ao meu lado e que cara ela tem...

 Ah, Guilherme, como eu gostaria de conhecer mais pessoas como você! Mal imagina a sua mãe... Mal sabe ela que os seus passos apressados e seu sorriso ultrapassam as paredes do apartamento... e que a sua 'espiadinha' diária faria o final do meu dia mais engraçado e acolhedor."

Texto publicado no livro Espiando pela Fresta, de Sibélia Zanon.

Conheça o livro Espiando pela Fresta



Leia Também

Irmãos em espírito

setembro 16, 2025


"‘Alaparos, meu irmão em espírito, ouve: tu mesmo deves ver, ouvir e examinar; depois reconhece e escolhe!’


‘Ouve e escolhe!’ Como que em êxtase espiritual, Alaparos tinha ouvido a voz de seu mestre. Não estava sozinho e desligado da comunidade de Ur. O elo, o misterioso elo, através do qual os iniciados recebiam e transmitiam notícias, ligava-o também.”


Roselis von Sass, A Desconhecida Babilônia


Leia Mais
Beleza e Enobrecimento

setembro 13, 2025

Abdruschin, Na Luz da Verdade - Mensagem do Graal

Leia Mais
Profunda Afeição

setembro 09, 2025


Quando Amenemhet, o mais moço, levantou os olhos, alguns minutos após, o esplendor havia desaparecido. Com expressão de tranquilidade no rosto, jazia o faraó, estendido; a mão que o filho segurava começava a esfriar.

‘Oh! pai’, disse o príncipe com profunda afeição, ‘assim, morrendo, ainda me ensinaste o melhor. Agradeço-te!’”


Aspectos do Antigo Egito, Coleção o Mundo do Graal

Leia Mais