Sempre que
passávamos de carro por aquele parque, eu pensava: “temos que vir fazer um
piquenique debaixo dessas árvores”. Idealizava um domingo de manhã reservado à
contemplação, com direito a café com leite e pão de queijo, ouvindo o canto dos
passarinhos e o vento acariciando as folhas. Sentia-me privilegiada em morar em
uma cidade onde há extensos parques públicos - uma raridade em nosso País - e
finalmente resolvi usufruir dessa possibilidade. Munidos de máquina
fotográfica, quitutes e protetor solar, lá fomos nós concretizar o tão sonhado
“domingo no parque”. Porém, ao chegar perto das maravilhosas árvores,
percebemos algo que não se via de dentro do carro: lixo, muito lixo, distribuído
por todos os lugares onde se poderia fazer uma parada.
Embalagens de
alimentos, papéis sujos, restos de cigarros e até preservativos usados se
misturavam à relva sob a copa das árvores, pisoteados e meio camuflados na
paisagem. Apenas ao chegar perto se conseguia distinguir a gravidade da
situação, de modo que caminhamos muito até encontrar um local menos sujo para
nos instalarmos. Diante desse triste quadro, fiquei pensando: “Como pode alguém
sujar um lugar tão belo? Será que as pessoas calculam como ficará esse parque,
construído para o lazer delas próprias, com o acúmulo de lixo? Por que em
alguns lugares do mundo o espaço público é visto como ‘terra de ninguém’, em
vez de ser abraçado por todos?”
Lembrei-me da
época em que fazíamos caminhadas nas matas. Era fácil saber se alguma pessoa
havia passado em uma trilha antes de nós: a maioria deixa um rastro de lixo,
mesmo em locais ermos e de difícil acesso. Também nas ruas das cidades, o
bicho-homem deixa a marca de sua insensatez pelos resíduos abandonados. Na
clássica obra “Fim do futuro? Manifesto ecológico brasileiro”, o ambientalista José
Antônio Lutzenberger afirma que: “O homem
moderno (...) tornou-se incapaz de sentir profundamente o belo, não se incomoda
com a feiura, com o lixo e a agressão na paisagem, falta-lhe a ânsia de
alcançar a harmonia em torno de si.”
“Falta-lhe a
ânsia de alcançar a harmonia em torno de si.” Detive-me nessa frase e fui
procurar a origem da palavra harmonia no Dicionário Houaiss. Vem do grego harmonia, que significa união, encaixe,
acordo, ordem. Está relacionada ao princípio da unidade. Diante disso, cogitei
que talvez os “jogadores de lixo” contumazes não se percebam unidos ao ambiente
que os circunda, portanto não lhes faz sentido buscar uma harmonização. Não
consideram que a embalagem plástica que deixam para trás não irá se deteriorar instantaneamente.
Sequer atinam os prejuízos que esse pequeno gesto trará ao meio ambiente,
afetando toda uma cadeia de seres vivos e, finalmente, os próprios seres
humanos.
Para o físico
Fritjof Capra, no livro “O Tao da Física”, atitudes como essa são reflexos de
uma visão fragmentária construída pela humanidade ao longo dos últimos séculos:
“A crença de que todos esses fragmentos –
em nós mesmos, em nosso ambiente e em nossa sociedade – são efetivamente
isolados pode ser encarada como a razão essencial para a atual série de crises
sociais, ecológicas e culturais. Essa crença tem nos alienado da natureza e dos
demais seres humanos, gerando uma distribuição absurdamente injusta de recursos
naturais e dando origem à desordem econômica e política, a uma onda crescente
de violência (espontânea e institucionalizada) e a um meio ambiente feio e poluído,
no qual a vida não raro se torna física e mentalmente insalubre.”
Diversos
religiosos, sábios e cientistas constataram, através dos tempos, que a ideia de
fragmentação, separação ou isolamento entre os elementos que compõem o Universo
é uma ilusão, decorrente de uma percepção superficial dos fenômenos da vida. Na
realidade não estamos separados, mas unidos a tudo e a todos, em um colossal
sistema de influências recíprocas. Até mesmo nossas menores ações ecoam sobre o
todo, circulando e retornando em seus efeitos ao ponto original. Isto é, ainda
que sequer nos lembremos de certos atos praticados, somos responsáveis pelas
consequências, como alerta o escritor Abdruschin: “Em cada querer inicial o ser humano produziu e criou algo, no qual ele mesmo, mais tarde, em prazo curto ou longo, terá de viver.”
Minhas
reflexões alcançaram os “lixos” menos visíveis que produzimos cotidianamente:
palavras inconsequentes, atitudes mesquinhas, sentimentos conturbados,
pensamentos confusos e perniciosos... Resíduos perigosos deixados pelos
caminhos do mundo. Se não forem tratados a tempo, geram sofrimento e
deterioração de nosso ambiente humano, assim como ocorre com os dejetos
materiais descartados de forma negligente.
Se o visível
reflete o invisível, como ensinam antigas tradições, a poluição que cresce a
olhos vistos em nosso mundo pode ser encarada como reflexo de um “ambiente
invisível” pouco limpo. Um somatório de inúmeras escolhas desarmoniosas, de
formas de pensar, sentir e agir que não contribuem para a elevação do ser
humano e dos demais seres que habitam o Planeta, mas para sua destruição.
Assim, o lixo
nos espaços públicos é apenas uma expressão palpável da alienação em que nos
encontramos, que nos torna indiferentes à feiura, ao lixo e à agressão na paisagem,
como observou Lutzenberger. Com o hábito de focalizar apenas interesses
imediatos, parece que perdemos a consciência de que hoje lançamos as sementes
de nosso futuro. Se no momento presente já vemos tanta desarmonia ao nosso
redor, o que será do amanhã?
Para sermos
novamente capazes de sentir profundamente o belo e de buscar a harmonia em
nosso ambiente, acredito que o primeiro passo seja harmonizar a paisagem de nossa
própria alma - transformando o incômodo lixo no adubo que alimenta as flores da
virtude. A esse respeito, há 2.400 anos o sábio Platão ensinava: “A harmonia se obtém pela virtude.”
“Os teus homens não têm juízo
Esqueceram tão grande amor
Ofereces os teus tesouros
Mas ninguém dá o teu valor.
Terra, Terra eu sou teu filho
Como as plantas e os animais
Só ao teu chão eu me entrego
Com amor, firmo tua paz.”
“Os incas daquele tempo não conheciam doenças. Nasciam saudáveis, alimentavam-se corretamente e também respiravam de modo certo; assim, com saúde, podiam deixar a Terra...”