“O erro é do próprio ser humano, que dá pouquíssima ou nenhuma atenção a todos os auxílios que lhe são presenteados, na ilusão do seu próprio querer e poder, por causa dos emaranhados do raciocínio que ele amarrou em torno de suas asas espirituais.”
Ganhamos cinco sentidos para perceber e experimentar o ambiente. Temos ainda a capacidade de refletir e de intuir. As flores que caem da árvore, atenuando o asfalto, são tapete ou incômodo? A diversidade de sons que sopram ventos e cantam pássaros são narrativas de estações e de chuvas. Capturamos um percentual pequeno da imensidão que nos cerca, o que prejudica a nossa percepção sobre o que recebemos cotidianamente. Numa época de infindáveis informações digitais e imagens, os olhos e o raciocínio ágil são predominantes. Juhani Pallasmaa, arquiteto finlandês, escreve: “O único sentido que é suficientemente rápido para acompanhar o aumento assombroso da velocidade do mundo tecnológico é a visão”.
Defensor de uma forma multissensorial de projetar a arquitetura, Pallasmaa fala que a soberania dos olhos, em detrimento dos demais sentidos, é uma patologia que nos oprime pela velocidade e simultaneidade, despreza a memória, a imaginação e os sonhos. Segundo ele, ambientes altamente tecnológicos como aeroportos e hospitais levam à alienação, ao isolamento e à exterioridade.
Mesmo quando em menor potência, atuamos como receptores e emissores o tempo todo em um fluxo de trocas permanente, de forma tão cotidiana e tão fundamental, como a própria respiração. Abdruschin escreve no livro Respostas a Perguntas: “Só quem expira corretamente, pode executar e executará automaticamente a inalação sadia e perfeita, sim, através da expiração correta é levado e obrigado a essa inalação. Isso proporciona ao corpo saúde e força. Com a expiração o ser humano dá! Ele dá algo que representa uma utilidade para a Criação: mencionamos aqui apenas o carbono, necessário à alimentação das plantas. Reciprocamente, ou consequentemente, pode aquele ser humano, que cuida bem da expiração, inalar profundamente e com satisfação, pelo que lhe aflui grande força, completamente diferente da respiração superficial”.
A potência desse fluxo de trocas aumenta quando conseguimos processar do lado de dentro aquilo que recebemos, como o exemplo do próprio ar. Quando percebemos que estamos recebendo algo, ficamos repletos. Da textura de uma folha à beleza de um gesto. Pelo simples fato de nos sentirmos presenteados, nós nos sentimos nutridos e assim ganhamos espaço interno para olhar o outro e a chance de processar e transbordar os benefícios recebidos para o ambiente ao redor. Quando, porém, não conseguimos enxergar o que recebemos, falta encantamento, nós nos sentimos desprovidos de riquezas e temos a sensação de precisar receber cada vez mais.
Reconhecer o potencial de cada presente pode exigir um exercício de afinar os instrumentos de apreciação da realidade. “Nós somos sujeitos ultrainformados, transbordantes de opiniões e superestimulados, mas também sujeitos cheios de vontade e hiperativos. E por isso, porque sempre estamos querendo o que não é, porque estamos sempre em atividade, porque estamos sempre mobilizados, não podemos parar. E, por não podermos parar, nada nos acontece”, escreve o educador Jorge Larrosa Bondía.
Segundo o autor, para que algo aconteça ou tenha o poder de nos tocar, precisamos fazer um gesto de interrupção: parar para pensar, sentir mais devagar, suspender a opinião e o juízo, cultivar a atenção e a delicadeza, aprender a lentidão, dar-se tempo e espaço. Ser observador e abrigo para as miudezas que saltam aos olhos. De fato, se estivermos sempre querendo o que não é, conectados a uma visão autocentrada e exigente de que tudo podemos e tudo merecemos, nossos pés correm o risco de perder o chão, desprezando o potencial de tudo o que recebemos cotidianamente.
“Anaga começou a mostrar à moça como era possível extrair incontáveis motivos de alegria daquela imensa riqueza inaproveitada. Conseguiu persuadi-la de como era possível encher uma cesta de flores, ir com ela até a escola para fazer uma distribuição ou mesmo presentear pobres mulheres que na vida nunca haviam recebido o agrado de uma flor sequer”, diz o livro Buddha. Ao sermos melhores receptores, quanta riqueza inaproveitada poderemos ainda experimentar e também transbordar para o ambiente ao nosso redor?