A paz é um artigo de luxo que não se pode comprar. Poucos
a possuem. Mas será que nem os pássaros usufruem dela embaixo do abacateiro?
Sobre a luta na natureza, Abdruschin,
pensador alemão, propõe a seguinte reflexão:
“Mesmo na
luta entre os animais só existem bênçãos, nenhuma crueldade. Basta que se observe bem qualquer
animal. Tomemos, por exemplo, o cão. Quanto mais atenciosamente for tratado tal
cão, tanto mais comodista se tornará, mais preguiçoso. Se um cão vive na sala
de trabalho de seu dono e este atenta, cuidadosamente, para que o animal jamais
seja pisado, ou apenas empurrado, mesmo que se deite em lugares onde
constantemente esteja em perigo de poder ser machucado sem intenção, como junto
à porta, etc., isso redunda apenas em prejuízo
do animal.
Em bem pouco tempo o cão perderá sua própria vigilância. Pessoas ‘de bom coração’ dizem, atenuando ‘afetivamente’, talvez até comovidas, que com isso ele mostra uma ‘confiança’ indizível! Sabe que ninguém o machucará! Na realidade, porém, nada mais é do que uma grave diminuição da capacidade de ‘vigilância’, um acentuado retrocesso da atividade anímica.”
Segundo a reflexão, estar alerta para defender-se não é
uma crueldade, mas parte das capacitações desenvolvidas naturalmente por cada
animal. A vigilância é, portanto, uma qualidade conquistada. Evitar a superproteção
desnecessária, não exclui, contudo, que se construa uma relação de confiança e
afeto, observando o que pode ser exigido de cada animal e que necessidades
precisam ser supridas.
E onde nós, humanos, e a nossa paz desejada nos
encaixamos nessa história? A paz para o ser humano, assim como para os animais,
talvez não seja a ausência total de perigos e nem mesmo a ausência de atividade,
como corremos o risco de pensar.
Buscando na minha memória fragmentos banhados da sensação
de paz, vejo que eles podem acontecer nas férias, em meio a paisagens bucólicas
ou em países mais seguros. Mas vivi alguns momentos de paz ainda com maior
intensidade em períodos de trabalho, ao finalizar algo que me parecia
importante. Talvez a paz esteja ligada ao equilíbrio entre atividade e descanso
e, em parte, à ideia de missão cumprida. Ela não cai, então, como um banquete
pronto na bandeja dos afortunados, mas é construída.
“Muitos imaginam que a paz seria a ausência de qualquer tipo de pressão,
e não é. A paz é justamente a condição de impedirmos qualquer forma de
segregação ou de apequenamento da vida e também da nossa condição de felicidade”,
avalia Mario Sergio Cortella. A
opinião do educador também aponta para um tipo de paz ativa e construída.
“Não vou brigar para ficar em paz”, ouve-se por aí. Esse
caminho pode ser válido em muitas situações, mas será que ele sempre dá certo? Quem
evita todo conflito por medo de se posicionar, ignorando as suas crenças e
ocultando sua maneira de pensar, fica em paz?
Cuidar dos
pensamentos emitidos e cultivados pode ser o berço da paz. Não cultivar
pensamentos-sementes que tenham o potencial para se transformarem em monstros é
o primeiro passo.
Pode parecer algo pequeno, considerando a paz ser tão grandiosa. Mas as mais diversas ações
nascem de pensamentos, o mundo que nos cerca está cheio de pensamentos prontos
para se unirem a outros pensamentos-irmãos, que acabam fortalecendo-se
mutuamente e podem influenciar outras mentes. Por meio dos pensamentos constroem-se
pontes ou barreiras em direção às pessoas ao redor.
Para
exemplificar, poderíamos imaginar um ambiente de trabalho hostil, em que pouco
se trabalha e muita política se faz, em que alguns só pensam e planejam driblar
os colegas e atropelá-los para chegar ao pódio o mais rápido possível. Pensam
exaustivamente em meios de manipular informações a respeito de determinado
colega, difamam outro e mentem sobre as conquistas realizadas, tentando
sobressair a qualquer custo. Como trabalhar em paz num ambiente assim?
Os fantasmas que se
cria ao pensar nas mais diversas formas de prejudicar o próximo para sair por
cima de qualquer situação não são fantasmas inofensivos ou simples pensamentos
que “não pagam taxas”, mas são pensamentos-monstros que ficam perambulando por
ali e voltam para assombrar seus donos quando eles menos esperam.
O exemplo serve para
ilustrar o tema, contudo, tantos são os pensamentos de inveja, ódio, vingança,
que não podemos imaginar coisas boas frutificando por aí. Mas... e se
imaginarmos outros tipos de pensamentos? Os pensamentos de amor e bem querer
são igualmente ou ainda superiormente fortes e podem ganhar poder com maior
afluxo de pensamentos similares, influenciando pessoas para as boas ações e
gerando o bem.
A paz não é construída a partir de uma receita pronta. É
preciso conquistá-la a cada passo, dentro das condições que a vida apresenta e
dentro da maturidade e capacitações de cada um. Mas, se conseguirmos afastar de
nossas mentes as sombras e fantasmas pensados, passando a nutrir apenas pensamentos
edificantes e positivos, aos poucos o ambiente ao redor vai mudar e a paz pode
até chegar mais perto.
Aí, quem sabe, continuaremos alertas como o pica-pau
embaixo do abacateiro, mas teremos outras condições anímicas para saborear a
vida, mais leveza e afago no lugar de tanto desassossego desnecessário.