As videiras dormem no inverno.
Hibernam. Há, contudo, uma força latente dentro delas, que aguarda um chamado.
O chamado da primavera. Dentro de cada um de nós também existem elementos que
hibernam. Hibernam ideias, conceitos, certezas sobre como as coisas são ou não,
certezas sobre como deveriam ser... No nosso caso, para todos esses elementos
um tanto adormecidos que nos habitam, também existe uma primavera. Mas não uma
primavera climática, com data marcada, e sim uma primavera circunstancial,
provocada pelas oportunidades de vivência que a vida traz.
Ao longo de toda a vida, passamos por
experiências importantes. Quando essas experiências deixam marcas, elas se
transformam em vivências, aquelas situações que nos impactamde
forma profunda e enriquecedora para novas percepções e que despertam nossa
sensibilidade para aspectos da existência – os quais até então não tocavam
nosso íntimo – modificando nosso modo de sentir e enxergar a vida e até a
nós mesmos. Essas marcas ou impressões fortes passam a constituir a nossa
mais importante base de entendimento da vida. Assim, a vivência pode dar significado,
vivacidade ao que dormia. Vez por outra ela chega como uma provocação,
convidando o que dorme lá dentro a ser despertado. Afinal, sono eterno nem a
Bela Adormecida tem. Tudo e todos acordamos um dia e quase nunca por causa do
beijo de um príncipe.
Conceitos emprestados, certezas
ilusórias, realidades construídas com açúcar... tudo isso um dia é convidado à
autenticidade. E quem já teve a oportunidade de vivenciar esse tipo de
transformação sabe que dissolver uma ilusão e construir uma realidade não é um
processo indolor.
Diz a lenda que uma maçã caiu na cabeça
de Isaac Newton, físico inglês, fazendo-o descobrir a lei da gravidade. Newton
percebeu que a maçã caiu porque havia uma força atraente puxando-a, força essa
exercida pela Terra. Se uma maçã caísse na minha cabeça, provavelmente não
aconteceria muito mais do que um hematoma. Assim, o que é vivência para um,
pode não ser para outro, pois o que cada um carrega dentro de si é fundamental
para a maneira como ele vai interpretar uma experiência. Daí o fato de as
vivências terem impactos diferentes nas cabeças e no interior de cada pessoa,
ainda que os fatos ou acontecimentos sejam exatamente os mesmos.
Essa riqueza, que é o conjunto de vivências
significativas que pertence a cada um, não se doa e não se empresta, porque
cada pessoa é confrontada com as vivências de que precisa, da maneira que
precisa, para o seu desenvolvimento único e pessoal. Pode-se até compartilhar
impressões e certezas, mas o que ficou vivo dentro de uma pessoa, dificilmente
se transfere com a mesma vivacidade para uma outra. Assim, querer poupar o
outro de sofrimentos e, com isso, impedir que ele vivencie as questões que se
colocam na sua própria trajetória, não tem propósito.
Contudo, isso não significa que
precisemos saber o gosto de absolutamente tudo para chegarmos à convicção ou
consciência sobre qualquer aspecto da vida. Se assim fosse, não haveria anos de
vida suficientes para experimentarmos tudo e muitos riscos estariam envolvidos.
É claro que podemos covivenciar situações, podemos aproveitar a experiência do
outro, na medida em que buscamos nos colocar no lugar de alguém que sofre ou
compartilhar impressões autênticas e profundas.
Na trajetória, deparamos ainda com um
desafio pelo caminho: nem tudo o que se experimenta constitui uma vivência.
Entre as etapas das videiras há um momento de tensão, quando as flores estão
aguardando a fertilização. A chuva pode diminuir a temperatura ideal para a
fertilização e arrastar consigo parte significativa do pólen disponível. É
nessa fase que pode ocorrer a queda das flores ou frutos jovens ou, ainda, sem
a fertilização, o bago permanece pequeno e os cachos de uva fracos e frouxos.
Quando vivemos uma experiência, mas não temos a maturidade para compreendê-la
de fato e não conseguimos extrair o que de útil ela traz, ela pode passar sem
ser percebida, feito flor de uva derrubada no chão. Pode ser que precisemos
reviver a mesma história em outro formato por mais vezes até que, enfim, ela
possa ser assimilada e transformada numa vivência com poder de conscientização,
com o peso e a beleza de um cacho de uva bem formado.
O poder das vivências mostra, assim,
que não adianta termos fórmulas prontas, com uma porção de conceitos
engessados, para o viver, porque é na prática que assimilamos de maneira
profunda sobre a verdade das coisas. Acumular certezas e conceitos emprestados
não é a chave para a sabedoria, porque só sabemos realmente sobre aquilo que
está marcado em nossa história de forma profunda, vivida, experimentada. As
videiras hibernam no inverno, mas há de chegar a primavera.
"—Li-Erl, filho dos jardins sagrados, grande foi a graça que Deus me proporcionou, permitindo-me ver-te. Puro como Ele te enviou, assim te conservaste. Guiado pela Pureza terás de caminhar por entre os homens, reavivando a Luz que se extingue, trazendo a Verdade àqueles que se asfixiam nos pecados.”
"— Maon, o sábio, já se encontra em tua casa, Alaparos. Ele unirá Maris Iamin e Scham-Haran na Terra com as flores da pureza." Roselis von Sass, A Desconhecida Babilônia