No compasso de uma borboleta

janeiro 29, 2013


Sibélia Zanon


Quando pensamos em coisas que nos são sagradas, no sentido de serem respeitadas, apreciadas e, portanto, cuidadas, vivenciamos uma revalorização de conceitos.

Imaginemos a seguinte cena: durante uma viagem de férias, uma jovem fica emocionada com a beleza da natureza, reconhecendo-a como algo de especial valor. No decorrer dos dias seguintes, de volta à rotina, compra um pássaro, que passa a morar numa gaiola na área de serviço de seu apartamento. Imagina, assim, ter a natureza mais próxima de si.

Na verdade, porém, a natureza ficou mais longe, pois a moça ignorou uma característica fundamental do pássaro: suas asas. E com isso ela exerce um amor pela metade, um amor que privilegia a posse, sem comprometimento com o bem-estar de quem diz amar. Seu reconhecimento do valor da natureza está limitado pelas grades de uma gaiola. Pode-se argumentar que um pássaro que nasceu em cativeiro não consegue sobreviver caso repentinamente se torne livre, mas a justificativa não convence, pois assim que não houver mais consumidores para pássaros em gaiola, eles voltarão a ganhar asas.

Partimos do pressuposto de que reconhecer verdadeiramente o valor de algo se traduz automaticamente em respeito e no desejo de proteger. Implica ação, que pode transformar uma veneração, por vezes vazia, numa atitude proativa.

A capacidade de reconhecer algo sagrado ou de real valor não está vinculada ao tempo de vida. Não está ligada à idade adulta ou infantil, mas sim à verdadeira infantilidade,que pode se evidenciar em qualquer época da existência.
Jesus já dizia: Tornai-vos como as crianças!Talvez ele estivesse se referindo ao resgate de uma pureza capaz de captar as impressões do mundo que nos cerca de forma menos racional, mais receptiva e sensível, intuitiva.

Mas como a capacidade de reconhecer o que tem real valor pode sair do mundo das ideias e entrar no mundo das ações? Num primeiro momento seria interessante observar se a ação, o sentimento e a fala estão em sintonia. Como, por exemplo, explicar para uma criança que o alimento e a água são sagrados e precisam ser cuidados, se ela vê frequentemente ambos serem desperdiçados dentro da própria casa?

Outro aspecto intrigante é a relação com o tempo. A nossa constante pressa ao percorrer a vida está nos levando para onde? O respeito, muitas vezes, exige tempo, e temos dificuldade em esperar pelo tempo de as coisas acontecerem.




Níkos Kazantzákis, escritor, poeta e pensador grego, mostra, com delidadeza, em Zorba,o Grego,a relação com o tempo. Ele conta que uma borboleta demorava muito a sair de seu casulo e ele passou a esquentá-lo com o calor de seu corpo. “Abriu-se o invólucro e a borboleta saiu arrastando-se. Não esquecerei jamais o horror que tive então: suas asas ainda não se haviam formado, e com todo o seu pequeno corpo trêmulo ela se esforçava para desdobrá-las. Debruçado sobre ela, eu ajudava com meu sopro. Em vão.” A borboleta não resistiu e o escritor conclui: “Creio que esse pequeno cadáver é o maior peso que tenho na consciência. Pois, compreendo atualmente, é um pecado mortal violar as leis da natureza. Não devemos nos apressar, nem nos impacientar, mas seguir com confiança o ritmo eterno.”

A reflexão parece utópica em uma Terra superpopulosa, com cidades intransitáveis e uma sociedade ligada ao consumo. Mas será que falamos realmente de utopias ou de transformações que se farão necessárias?

Vive-se numa época em que o muito parece ser inimigo do bom. Um exemplo: a combinação de muito lucro em curto espaço de tempo, muito desperdício e muita carne sendo produzida para alimentação. A consequência é a falta de tempo para a galinha crescer, para o gado se desenvolver e isso gera confinamento, desmatamento, condições duvidosas na criação em larga escala. E que “alimentação sagrada” seria essa, que é consequência de tantas insensibilidades em relação à vida?

Reconhecer algo sagrado compromete à ação, o que parece muitas vezes difícil porque queremos, acima de tudo, distração. Acontece que a felicidade tão almejada vem da ação. Pelo menos é o que diz o escritor australiano Paul Gilding, em entrevista à Globo News: “O que nós temos de perceber é que a qualidade de vida não vem das distrações, e sim de fazer coisas. Não se trata de se distrair na vida, e sim de vivê-la. Isso pode vir de uma comunidade mais forte, de aprender coisas novas...”. O escritor diz que grande parte dessas coisas não custa dinheiro, mas leva tempo. E vale a pena resguardar esse tempo, porque usá-lo exclusivamente para ganhar dinheiro não traz satisfação. “Nós temos de consertar o mundo, mas olhando para dentro e consertando nós mesmos. É por isso que toda essa ideia tem a ver com uma evolução consciente da humanidade e de nós mesmos. Reconhecer que isso tem a ver com qualidade de vida e que a vida assim será melhor é um ótimo começo”, conclui Gilding.
Reconhecer valores e protegê-los faz parte de uma evolução consciente que pode gerar um recomeço mais humano e coerente, recomeço dotado de asas que voam mais longe, leve e alto.



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Daniela Schmitz Wortmeyer

Ainda me lembro com nitidez daquela cena: ela caminhava apressada com uma folha nas mãos, lendo o conteúdo, enquanto lágrimas se avolumavam em seu rosto. Entrou quase em fuga no vestiário. Eu, que passava pelo corredor nesse exato momento, tive o impulso de segui-la, sentindo que deveria ajudar.

Trabalhávamos em setores distintos, embora próximos, e nossos contatos até então se resumiam a poucas conversas triviais. E eis que, de súbito, me vejo diante dela, agora sentada em um sofá entre os armários do vestiário, com um diagnóstico em mãos: “câncer”. 

O turbilhão em que ela se viu a partir desse dia acabou envolvendo várias pessoas. Entre torrentes de lágrimas, apreensões compartilhadas, histórias inspiradoras contadas, palavras de apoio e carinho, abraços e orações, foi se formando uma comunidade em torno dela, cada um se esforçando para auxiliar como podia. Os laços foram se fortalecendo, pessoas antes dispersas passaram a se integrar e colaborar, sensibilizadas pelo que ocorria.

A partir daquele forte abalo, em que a terra pareceu tremer e escapar de baixo dos pés, muita coisa pôde vir à luz. Nossas conversas cotidianas se tornaram mais profundas e significativas, tocando em temas como a percepção da fragilidade da própria vida, os medos ligados ao que aconteceria consigo e com a família, reflexões sobre o que significou sua jornada até ali, perguntas sobre o real significado da existência, a busca por compreender os porquês, nos campos físico, emocional, espiritual...
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