Feijão com arroz

maio 06, 2013


Sibélia Zanon
 

 
 
O menino pega, com gestos incertos, a colher pequena. Tenta pescar o feijão no prato. Ajuda com o indicador da mão esquerda, arrastando alguns grãos teimosos para dentro da colher. A mãe observa orgulhosa:

 

— Olha que beleza, ele já come sozinho!

 

Nada impede que, vez por outra, o feijão escorregue da colher e suje a roupa limpinha. A mãe vai ralhar? Depende do humor do momento. Mas ter o poder de manobrar a próxima colherada não tem preço! Nisso mãe e filho estão de acordo.

 

Assim começam as conquistas. Mas parece que em algum momento deixamos de gostar de ter a colher nas mãos. Ou melhor: desejamos dispor dos talheres, todos eles, mas não queremos nos responsabilizar pelo feijão derramado.

 

Não há dúvida de que muitos gostariam de fugir das responsabilidades das mais diversas maneiras. Vivemos numa sociedade em que o amadurecimento pode ser confundido com envelhecimento, o que deixou de ser algo natural e passou a ser encarado como punição. Nesta mesma sociedade, a juventude é supervalorizada e a adolescência é elástica, prolongando-se tanto quanto possível. Desse jeito, quem quer ser maduro e, consequentemente, responsável?

 

Michael Foley, professor e escritor irlandês, faz uma crítica à incapacidade humana de aceitar a culpa. Segundo Foley há uma tendência em classificar comportamentos indesejáveis como transtornos. Desse modo, inúmeros novos transtornos não param de ser incluídos no Manual diagnóstico e estatístico de transtornos mentais (DSM)– obra de referência da área. Foley sugere, com humor, que seja também incluído no manual o “transtorno do vício de transtorno (TVT), uma compulsão incontrolável de classificar todo comportamento humano indesejável como transtorno”.

 

O escritor afirma que “o fenômeno do transtorno é apenas uma consequência do desejo contemporâneo de fugir à responsabilidade”.  Ao contrário de assumir qualquer culpa, hoje todos querem ser vítimas.

 


   A fuga às responsabilidades pode se dar jogando a culpa nas costas de algum transtorno, de alguma pessoa ou ainda da sociedade. Jean-Jacques Rousseau, filósofo suíço, defendia a ideia de que o homem é bom por natureza e a sociedade o corrompe. “Por influência de Rousseau, nossas sociedades relativizaram a responsabilidade dos indivíduos”, critica o psiquiatra e escritor inglês Anthony Daniels, conhecido pelo pseudônimo Theodore Dalrymple. Para Dalrymple é conveniente atribuir todas as imperfeições humanas à influência social. Assim a culpa é da sociedade e não do indivíduo.

 

Mas onde se perdeu aquele valor, ensinado desde a infância, de que só podemos realizar algo se também tivermos condições de arcar com as consequências daquilo que escolhemos?

 

Por isso se fala em livre-arbítrio, a característica do ser humano de tomar resoluções. A responsabilidade é uma consequência dessa liberdade de escolha. Longe de simbolizar castigo ou prejuízo, o livre-arbítrio está ligado a uma equação lógica, rotineira e eterna: o privilégio da escolha está atado impreterivelmente aos seus frutos, ou: no ato de escolher está incluído – assim como na palavra também – o ato de colher.  A lição é primária: do pé de feijão nasce feijão. Logo em breve, o menino do começo da nossa história vai descobrir isso. 


   Essa lição mostra ainda que não basta estarmos centrados exclusivamente em nossos interesses particulares. “Segundo os gregos, o ser ‘político’ é qualquer pessoa que se interesse pelo bem comum, pela harmonia da cidade (polis). Através do juramento, o jovem transformava-se em cidadão, pois mostrava ter adquirido consciência política. Aquele que não assumisse a responsabilidade política de zelar pela coletividade era considerado um ‘idiota’, ou seja, centrado apenas em si mesmo (id) e em seus interesses particulares”, escreve Eugenio Mussak, médico e professor.

Assumir responsabilidades significa tanto aceitar o sucesso, como também o fracasso. Contudo, aqueles que assumem seus méritos e insucessos assumem também as rédeas de sua própria trajetória. E isso traz poder e bem-estar porque nessa ideia está incluído o senso de justiça: todos estamos sujeitos à mesma equação.

Nada melhor do que ter a colher nas mãos! E se o feijão escorregar, vamos cuidar da limpeza e, com isso, aprenderemos a manobrar melhor a colher.

 



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