Fala-se, de forma saudosa, sobre as casas de outros tempos, os bairros
de outros tempos, a vizinhança deoutros
tempos.
Diz-se que naqueles tempos aspessoas
se conheciam, os vizinhos se viam, cumprimentavam-se e se relacionavam de uma forma
ou de outra. A famosa xícara de açúcar servia para quebrar o gelo.
Hoje parece que o gelo está em sua melhor forma sólida, ignorando o
aquecimento global.
Estamos contaminados por uma dose de indiferença, outra de defesa e um
bocado de pressa.
Pela manhã, ao sair do elevador e manobrar o carro na garagem do edifício,
vejo uma pessoa manobrando seu carro na minha frente e paro meu carro,
aguardando que ela possa sair. Ela não me vê ou se esforça para não me ver. Na
saída da garagem, nossos carros ficam emparelhados. Penso em abrir o vidro do
meu carropara dar bom dia no mesmo
instante em que ela fecha o vidro do carro dela e olha, com seus óculos
escuros, exclusivamente para frente.
A cena me interessou. Não por eu não estarcontaminada pelo gelo antártico, mas porque às vezes tento quebrá-lo,
pensando no excesso de anonimato.
Mas a cena me interessou mais do que tudo pelo contraste que eu viveria
logo em seguida. Saindo do meu apartamento, entrei naquele dia num outro prédio
residencial. Quando andava, em direção ao elevador, no corredor comprido, me
chamou atenção uma senhora que caminhavana minha direção.
Ela estava arrumando a bolsa, andava de cabeça baixa olhando para alguns
papéis ou documentos que dobrava e guardava com cuidado.
Quando estava chegando perto de mim, e eu crente de que seríamos mais
duas anônimas no mundo, ela levantou os olhos da bolsa, olhou bem para mim,
sorriu, e disse: “Bom dia!”.
Foi estranhamente terno aquele gesto. Fiquei pensando sobre como as
coisas simples nos salvam da desumanidade.
Por aquele dia, aquela desconhecida me tirou do anonimato, quebrou o iceberg
do senso comum, deu-me uma xícara de açúcar... e nem ficou sabendo.
“O ser humano tem de aprender finalmente que a verdadeira grandeza só se encontra nos acontecimentos mais simples e naturais. Que a grandeza condiciona essa simplicidade.
Assim é na Criação, assim é nele próprio, que a ela pertence como uma parte!”
Os diversos tipos de dor, perda ou luto exigem alguma medida de reformulação. Quando se perde alguém querido, quando se perde uma habilidade, quando se perde algo que parecia fornecer esteio ou segurança… algo novo deseja ser delineado.
Nem sempre precisamos viver a perda para perceber a necessidade de alguma reconstrução. Não é preciso esperar pelos problemas graves para começar uma mudança. Perceber outras xícaras ruindo pelo mundo e covivenciar aquela dor pode ser um jeito de aprender e revisar o cuidado antes que um objeto escorra das próprias mãos.