O voo libertador

fevereiro 20, 2015

Daniela Schmitz Wortmeyer


O voo das araras-canindés é uma pintura inesquecível. O dorso inteiramente azul, tendo como fundo o céu do cerrado no verão, produz um tom sobre tom, e eis que um giro inesperado revela a face inferior do corpo da ave, tingida de amarelo-ouro a partir do pescoço. Mais rodopios me surpreendem com um balé no ar. A dança em amarelo e azul foi tão ágil que me fez perder a noção das formas, ficando apenas a alternância de cores e o deslumbramento. Passei a ficar vigiando seus movimentos, ouvindo os sons e aguardando a próxima aparição, que muitas vezes ocorria sob o sol do final da tarde, a iluminar a face amarela de suas asas durante o voo majestoso. Também vi bandos de araras pousados em árvores, entabulando extensas conversas com seu grasnar característico. Nessas horas eu ficava torcendo para que uma delas resolvesse iniciar um voo. Quando distendiam as penas, abrindo suas grandes asas e cauda e permanecendo assim por alguns segundos no ar, eu me sentia diante de uma imagem sagrada, atravessada por luzes e cores, irradiando vitalidade e liberdade.

A magnificência da natureza no Planalto Central, assim como em outras regiões do vasto território brasileiro, exigiria alguns tratados para ser descrita. Além de mamíferos como a suçuarana, o lobo-guará, a jaguatirica e tantos outros que costumam transitar longe dos olhos humanos, há aves em profusão que frequentemente são avistadas pelos visitantes, diversas espécies de gaviões, araras, papagaios, maritacas, martins, beija-flores e inúmeras outras, ao lado de uma infinidade de borboletas, libélulas e outros insetos multicoloridos. A vegetação típica do cerrado, balizada por árvores esculturais, com troncos de belas texturas e formatos retorcidos, revela flores endêmicas de rara beleza, além de plantas com variadas propriedades medicinais. As trilhas sob sol forte e céu de azul intenso cruzam um solo impregnado de minerais, indo ao encontro de rios de águas cristalinas sinalizados pelos buritis em suas margens. Chapadões de pedra esculpidos ao longo de milênios envolvem cachoeiras monumentais, arrematadas por poços azuis e verdes que convidam ao refresco e à contemplação. O ar puríssimo, a paz e a tranquilidade reinantes coroam esse cenário de harmonia paradisíaca.

Após alguns dias de maravilhamento constante, alheia aos assuntos cotidianos, voltei para casa e fui checar minha caixa de mensagens. Então tomei um choque: me deparei com um e-mail que se referia justamente à região onde eu estivera, sobre um projeto de construção de usinas hidrelétricas e posterior instalação de mineradoras estrangeiras, com promessas de aumento na arrecadação dos municípios. Quem difundiu a notícia destacava o risco de as novas gerações perderem a possibilidade de conhecer aquele santuário no Brasil-Central. Isso porque, como se sabe, os impactos de tais iniciativas sobre o ecossistema local são incalculáveis, produzindo gradual extinção de paisagens e espécies que hoje coexistem em delicada interdependência e harmonia.



No primeiro momento senti pânico, desespero, ao imaginar que toda aquela vida que preencheu minha viagem poderia sofrer e desaparecer. Depois me senti impelida a escrever sobre o assunto, a agir de alguma forma a respeito dessas ameaças. Em meio à turbulência de emoções e imagens que se sucediam em minha consciência, eu pensava por que esse velho enredo continua a ser reeditado, sempre de novo entrando em cartaz em diferentes regiões do Brasil e do mundo, apesar dos alarmes acionados pela Natureza.  

Uma retrospectiva histórica mostra que as promessas de vantagens financeiras e melhoria das condições de vida, feitas com veemência pelos “empreendedores” que animam projetos desse naipe, frequentemente têm alcance muito limitado ou acarretam com o tempo prejuízos que superam os benefícios, considerando as consequências para o planeta. Dia após dia vemos proliferarem as dificuldades para a vida humana, atingindo aspectos tão básicos como a água, o ar e a alimentação – sem falar na interminável lista de mazelas de ordem social, moral e espiritual, corolário de tal modelo torto de desenvolvimento. O fato de esses problemas se avolumarem nas grandes cidades, tidas como mais “desenvolvidas” segundo os parâmetros vigentes, poderia ser suficiente para conduzir a um profundo questionamento da direção adotada para o progresso da humanidade.  

Mas ainda há quem acredite em um progresso que implica a destruição da paz, avançando no contrafluxo das leis perfeitas que regem a Natureza – isto é, todo o Universo. Persiste a negação obstinada de que o ser humano é parte integrante de um imenso sistema cósmico, uma minúscula célula que sofrerá, cedo ou tarde, os efeitos dos prejuízos causados às demais. A esse respeito, o escritor Abdruschin adverte: “Nenhum ser humano pode se esquivar das leis da natureza, ninguém consegue nadar em sentido contrário a elas. Deus é a força que impulsiona as leis da natureza, a força que ninguém ainda compreendeu, que ninguém viu, mas cujos efeitos cada um, dia a dia, hora a hora, até mesmo nas frações detodos os segundos, tem de ver, intuir, observar, se apenas quiser ver, em si próprio, em cada animal, cada árvore, cada flor, cada fibra de uma folha, quando irrompe do invólucro para chegar à luz.”

Não falta à humanidade capacitação intelectual para compreender os princípios que regem o grande sistema universal e reconhecer as consequências de sua participação ativa nesse funcionamento. Tampouco lhe falta capacitação tecnológica para implantar um modelo sustentável, responsável e ético de desenvolvimento. O que falta, então?

Por que insistimos em nadar contra a corrente das leis universais? Por que continuamos a ser perturbadores da harmonia com nossas escolhas?

Em meus dias de férias, além das araras, pela primeira vez vi papagaios, daqueles verdes com uma faixa vermelha na cauda, voando livremente. Lembrei-me da minha infância, quando algumas pessoas tinham papagaios em cativeiro como animais de estimação. Minhas lembranças dessa época alcançaram araras-canindés em jardins zoológicos. O contraste provocado por essas imagens foi arrebatador: de um lado, as aves encarceradas em gaiolas do meu passado, com fisionomia triste, cores pálidas e movimentos restritos; do outro, as aves livres que admirei, com cores resplandecentes e expressão vibrante, denotando alegria e gratidão pela vida em cada movimento.

Quem não conhece a expressão de uma ave livre não pode sentir esse contraste. Talvez até acredite que a liberdade seja perigosa, que o cativeiro não seja tão prejudicial assim, quem sabe necessário. É assustador constatar o quanto perdemos a capacidade de perceber tais diferenças, em diversas esferas da existência. O quanto nos tornamos insensíveis para o horror de tudo o que se opõe à Vida, consentindo com decisões que tornam nosso universo diário cada vez mais triste, pálido e sem horizonte. 
Com tanta inspiração diante das imagens das aves, fiquei imaginando que as pessoas que subjugam outros seres para alcançarem seus objetivos devem se parecer, em um nível mais sutil, com aves em cativeiro, cujos olhos perdidos esqueceram a cor do céu. Pois, ao causarem sofrimento a outros, focando apenas em ganhos materiais imediatos, aprisionam o que há de melhor em si mesmas e ficam tolhidas em seu potencial humano – o que termina por resultar na autocondenação a um profundo sofrimento. Em contraste, as pessoas que procuram cultivar a harmonia com as leis universais, zelando por todas as formas de vida, talvez interiormente se assemelhem às araras-canindés que estendem as asas para o voo, irradiando luz e calor pela vibração de seus espíritos. Guardam no coração o anseio por voos mais elevados, em que o desenvolvimento da humanidade será sinônimo de Vida em plenitude para todos os seres.



Fotos: Charles Wortmeyer


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