Moldar a argila

fevereiro 28, 2024

Ilustração colorida de mãos moldando barro

A roda do oleiro gira. As mãos moldam a argila e dali surgem potes, jarras, vasos.
A roda gira, mas são as mãos que formam. É com paciência e habilidade que se
modela o barro.

A Terra gira. A atuação de cada um – incluindo sentimentos, pensamentos, palavras e ações – é capaz de impactar as condições de vida. Condições mais ou menos favoráveis. Coletivamente, somos afetados pela atuação humana como um todo.

Abdruschin escreve em Na Luz da Verdade: “Assim, a vontade do espírito humano é responsável por muita coisa que se desenvolve na Criação posterior, pois ele exerce como espírito a pressão que determina a espécie da forma. Nada pode ele querer sem simultaneamente formar! Seja o que for! Por isso, nunca pode subtrair-se também à responsabilidade por tudo quanto tem formado. Sua vontade, seu pensar e seu atuar! Tudo toma forma na engrenagem deste mundo”.

Vivemos tempos de desequilíbrio. Mesmo quando buscamos a estabilidade
intensamente, é difícil conquistá-la: o suor não deixa de escorrer pela pele, a jornada de trabalho exaure, a água transborda ou some dos rios, o peixe e o pescador agonizam.

Diante dos sofrimentos, algumas pessoas se sentem inconformadas. Mas a jarra
que descansa sobre a mesa de jantar tem o formato que imprimimos com as
próprias mãos. A energia que cada um coloca no mundo reverbera, ganha corpo, e retorna de maneira cíclica.

O grande desequilíbrio, que vemos e vivemos, é um reflexo de mãos pesadas agindo com pouco respeito ou pouca delicadeza sobre o mundo. A jarra está torta e a qualquer momento a água vai entornar.

“De maneira sempre crescente, o homem moderno pensa sua liberdade na razão
direta de sua capacidade de prescindir de qualquer lei que lhe seja externa, tão mais livre quanto mais ele domina o mundo”, escreve a filósofa Nancy Mangabeira Unger.

Segundo Unger, buscamos segurança tentando dominar a realidade e expandir o
poder, ao invés de experienciar a vida na posição de parte integrante do Cosmo. E essa atitude causa “uma desertificação do mundo, tanto no sentido físico, como no sentido anímico, espiritual”.

A ideia do poderio humano sobre o mundo, ignorando que a Terra já existia há
muito tempo antes de sua chegada, ignorando os seres não humanos e tudo o que há de sobre-humano, formou um mundo torto. E, quando nos afastamos demais do equilíbrio, uma avalanche de desequilíbrio chega ainda com maior intensidade, agindo como força de redirecionamento, exigindo transformação, como um chamado para a renovação.

Assim, talvez não seja possível simplesmente consertar a jarra. Pode ser que ela se quebre de novo, por não ter mais a resistência original, e que seja necessário reiniciar os trabalhos na roda de oleiro, imprimindo novas intenções nas formas que moldamos.

É certo que uma dose de desequilíbrio é natural dentro de uma vida equilibrada. Se tudo fosse muito linear e perfeitamente alinhado, talvez houvesse menos aprendizado. Não há dúvida de que cada um caiu diversas vezes para aprender a andar e, ainda assim, teve a vontade e a coragem de se levantar para experimentar mais um passo.

Vivemos tempos de relembrar a coragem e de moldar a argila de um jeito mais
comprometido com as sabedorias das leis naturais, com as raízes e os elos que nos conectam ao todo, talvez de um jeito menos exigente e mais grato por termos nas mãos a possibilidade de formar algo genuíno e novo todo o tempo: em cada pensamento, em cada curva de um rio – com a simplicidade de um peixe.

“Conheço a alegria dos peixes no rio através de minha própria alegria, à medida
que vou caminhando à beira do mesmo rio”, já dizia um antigo poema chinês.


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