Fincar raízes. Adquirir estabilidade e segurança.
Construir uma casa, formar laços sólidos, garantir a aposentadoria. Tornar-se
um cidadão respeitável. Minimizar desconfortos e riscos. Aplainar cada vez mais
os caminhos, visando uma viagem sem solavancos ou grandes tribulações. Chegar
ao final da vida com saúde e conforto material, permitindo-se algumas
tranquilas viagens de lazer, para em seguida retornar ao ninho. Usufruir das
conquistas após uma árdua jornada de trabalhos. Cercar-se do familiar, do
agradável, do conhecido e previsível, sempre que possível. Eis o plano de uma
trajetória bem-sucedida, na opinião de tantas pessoas.
Embora todas essas dimensões, se bem dosadas, tenham sua
importância na conformação de uma vida equilibrada, o resultado final não é
assim tão positivo quando as energias humanas são direcionadas predominantemente
para a busca de conforto e segurança. “O objetivo atual do raciocínio de tantos
seres humanos terrenos é descanso e vida cômoda. Passar ainda os últimos anos
terrenos na comodidade é, por muitos seres humanos terrenos, considerado como o
coroamento de suas atividades. Todavia, é veneno o que com isso almejam. É o
começo de seu fim, que assim criam!”, adverte o escritor Abdruschin.
O demasiado apego a aspectos mutáveis da existência – como
pessoas, bens, lugares, rotinas e posições sociais – decorre da ilusão de, com
isso, evitar o desassossego e, quem sabe, o sofrimento decorrente da
transformação. É como se toda essa construção erigida pelo ser humano em torno
de si, que se lhe torna tão cara e familiar, o impedisse paulatinamente de
enxergar que o objetivo maior de sua trajetória é, na realidade, a mudança. Pois
não é possível crescer e se desenvolver sem mudar.
Tenho especial predileção pelo poema Degraus (Stufen), do escritor alemão Hermann
Hesse (a seguir em tradução livre, de autoria desconhecida):
Tal qual cada flor fenece
e toda juventude cede à idade,
floresce cada patamar da vida.
Toda sabedoria e toda virtude
também florescem a seu tempo
e não devem durar eternamente.
O coração precisa estar, em cada patamar da vida,
predisposto à despedida e a novo início
para, na coragem e sem pesar,
entregar-se a novas ligações.
E em todo começo reside uma magia
que nos protege e nos ajuda a viver.
Temos de transpor, dispostos, espaço a espaço
e a nenhum nos apegar como a uma pátria.
O Espírito Universal não nos quer prender e limitar:
quer erguer-nos degrau a degrau, quer nos ampliar.
Mal nos habituamos a um ambiente,
sentindo-o familiar, ameaça a acomodar-nos.
Só quem esteja pronto a partir e viajar
talvez escape do hábito paralisante.
Talvez ainda a hora da morte
nos envie, jovens, a novos espaços;
o apelo da vida a nós jamais há de findar.
Vamos lá, meu coração: despede-te e convalesce.
Nosso despreparo para “partir e viajar”, para nos
desapegarmos das condições exteriores da existência, frequentemente se faz
sentir quando enfrentamos mudanças na rotina. O surgimento de um impedimento qualquer
para cumprir o planejado, a falha de algum recurso material, um desajuste na
saúde ou um deslize próprio ou de outrem, por vezes, desencadeiam acessos de ansiedade
e descontrole emocional, que ao extremo podem beirar o desespero. Aparentemente,
a agenda se tornou o supremo regente da vida humana – o que denota, mais uma
vez, nosso apego a algo demasiadamente frágil, frente ao inevitável dinamismo
da vida.
Se pequenas alterações nos parâmetros de um planejamento
já provocam esse tipo de reação, o que podemos esperar diante de grandes
mudanças, que impossibilitem categoricamente continuar levando uma vida
“normal”?
A opinião pública costuma tratar como especialmente
desafortunados aqueles que se deparam com incisivas alterações ambientais, patrimoniais,
corporais ou sociais, sendo obrigados a mudar o lugar em que vivem, reconstruir
sua estrutura material, lidar com novas (in)capacidades físicas ou com perdas
de pessoas queridas, entre tantas outras situações. Causa espanto quando algum
dos atingidos, em vez do tradicional pranto e desespero, mostra uma postura
altiva, declarando que “a vida continua”, que “agora é começar tudo de novo”.
É claro que “começar tudo de novo” não acontece sem abalos.
As grandes transformações do ser humano, assim como um terremoto, exigem
deslocamentos de posição, tremores de antigas certezas e soterramentos de
valores ultrapassados. Isso quer dizer que, por algum período, a alma do ser
humano pode parecer uma cidade devastada até que seja possível novamente
florescer algo novo naquele chão em recuperação.
Apesar do cenário desafiador, aparentes perdas e
infortúnios podem se constituir em verdadeiras bênçãos, sob o ponto de vista do
desenvolvimento humano. Nas palavras de Abdruschin: “Só a necessidade leva
muitas criaturas humanas ao despertar e ao movimento.” Acostumamo-nos
demasiadamente ao familiar e previsível, esquecendo-nos de que a finalidade de
nossa passagem pela Terra não se reduz à dimensão material, aos bens, posições
e relacionamentos que conseguimos amealhar.
Abdruschin ressalta que: “Só tem finalidade e proveito
para o ser humano, o que não devemos tomar aqui na acepção do corpo material,
aquilo que durante sua existência terrena atuou com bastante profundidade,
imprimindo-lhe na alma seu cunho particular, indelével e permanente. Somente
tais impressões têm influência sobre a formação da alma humana, e assim,
prosseguindo, influem também sobre a evolução do espírito em seu
desenvolvimento permanente.” Somente as ligações e vivências que tocaram
verdadeiramente o íntimo do ser humano, para além de todas as aparências e
interesses egoísticos, resistirão aos ciclos de transformação que caracterizam
a existência.
As alterações da normalidade cotidiana convidam à
reflexão e ao movimento, tantas vezes paralisados pela segurança e pelo
conforto... Nessas situações, algumas pessoas são levadas a perceber que,
apesar de todas as mudanças exteriores, há algo que permanece. Há uma essência
que perdura, de onde brota a força e a confiança para enfrentar os desafios, constituindo
a fonte da autêntica segurança – uma vez que aspira à eternidade.
É interessante observar como a maioria das pessoas conduz
seu dia a dia: evitando, de todas as formas, cogitar que um dia tudo isso irá
acabar... Isto é, que precisaremos nos despedir desse plano material. “Certamente
não existe nenhum acontecimento que, apesar de sua inevitabilidade, seja sempre
de novo posto tão de lado nos pensamentos, como a morte. Mas também certamente
nenhum acontecimento existe tão importante na vida terrena, a não ser o do
nascimento. Contudo, é bem notório que o ser humano queira se ocupar tão pouco
exatamente com o começo e o fim de sua existência terrena, ao passo que a todos
os outros acontecimentos, mesmo os de importância totalmente secundária, queira
emprestar significação profunda.”, analisa Abdruschin.
Tomar a inevitabilidade da morte em consideração, refletir
sobre a necessidade humana de um dia partir deste plano existencial, pode
trazer nova luz aos acontecimentos diários. Ou será que é imprescindível passar
por um “susto” – uma doença, um acidente ou qualquer outro evento que evidencie
nossa fragilidade e finitude – para repensar nossas prioridades e escolhas na
vida?
Flores que fenecem... O apego excessivo a aspectos
transitórios parece uma atitude pueril, em face de uma abordagem mais realista
da destinação humana. Cada pessoa precisa galgar degrau a degrau sua singular trajetória
de desenvolvimento, com seus próprios passos e esforços... Porém, no turbilhão
de estímulos do caminho, é preciso apurar o olhar para diferenciar as pétalas
que o vento levará dos valores permanentes, buscando um sentido espiritualizado
para a existência.
“Os incas daquele tempo não conheciam doenças. Nasciam saudáveis, alimentavam-se corretamente e também respiravam de modo certo; assim, com saúde, podiam deixar a Terra...”