Flores que o vento leva

fevereiro 08, 2014


Daniela Schmitz Wortmeyer


Fincar raízes. Adquirir estabilidade e segurança. Construir uma casa, formar laços sólidos, garantir a aposentadoria. Tornar-se um cidadão respeitável. Minimizar desconfortos e riscos. Aplainar cada vez mais os caminhos, visando uma viagem sem solavancos ou grandes tribulações. Chegar ao final da vida com saúde e conforto material, permitindo-se algumas tranquilas viagens de lazer, para em seguida retornar ao ninho. Usufruir das conquistas após uma árdua jornada de trabalhos. Cercar-se do familiar, do agradável, do conhecido e previsível, sempre que possível. Eis o plano de uma trajetória bem-sucedida, na opinião de tantas pessoas.

Embora todas essas dimensões, se bem dosadas, tenham sua importância na conformação de uma vida equilibrada, o resultado final não é assim tão positivo quando as energias humanas são direcionadas predominantemente para a busca de conforto e segurança. “O objetivo atual do raciocínio de tantos seres humanos terrenos é descanso e vida cômoda. Passar ainda os últimos anos terrenos na comodidade é, por muitos seres humanos terrenos, considerado como o coroamento de suas atividades. Todavia, é veneno o que com isso almejam. É o começo de seu fim, que assim criam!”, adverte o escritor Abdruschin.

O demasiado apego a aspectos mutáveis da existência – como pessoas, bens, lugares, rotinas e posições sociais – decorre da ilusão de, com isso, evitar o desassossego e, quem sabe, o sofrimento decorrente da transformação. É como se toda essa construção erigida pelo ser humano em torno de si, que se lhe torna tão cara e familiar, o impedisse paulatinamente de enxergar que o objetivo maior de sua trajetória é, na realidade, a mudança. Pois não é possível crescer e se desenvolver sem mudar.

Tenho especial predileção pelo poema Degraus (Stufen), do escritor alemão Hermann Hesse (a seguir em tradução livre, de autoria desconhecida):

Tal qual cada flor fenece

e toda juventude cede à idade,

floresce cada patamar da vida.

Toda sabedoria e toda virtude

também florescem a seu tempo

e não devem durar eternamente.

O coração precisa estar, em cada patamar da vida,

predisposto à despedida e a novo início

para, na coragem e sem pesar,

entregar-se a novas ligações.

E em todo começo reside uma magia

que nos protege e nos ajuda a viver.

Temos de transpor, dispostos, espaço a espaço

e a nenhum nos apegar como a uma pátria.

O Espírito Universal não nos quer prender e limitar:

quer erguer-nos degrau a degrau, quer nos ampliar.

Mal nos habituamos a um ambiente,

sentindo-o familiar, ameaça a acomodar-nos.

Só quem esteja pronto a partir e viajar

talvez escape do hábito paralisante.

Talvez ainda a hora da morte

nos envie, jovens, a novos espaços;

o apelo da vida a nós jamais há de findar.

Vamos lá, meu coração: despede-te e convalesce.


Nosso despreparo para “partir e viajar”, para nos desapegarmos das condições exteriores da existência, frequentemente se faz sentir quando enfrentamos mudanças na rotina. O surgimento de um impedimento qualquer para cumprir o planejado, a falha de algum recurso material, um desajuste na saúde ou um deslize próprio ou de outrem, por vezes, desencadeiam acessos de ansiedade e descontrole emocional, que ao extremo podem beirar o desespero. Aparentemente, a agenda se tornou o supremo regente da vida humana – o que denota, mais uma vez, nosso apego a algo demasiadamente frágil, frente ao inevitável dinamismo da vida.



Se pequenas alterações nos parâmetros de um planejamento já provocam esse tipo de reação, o que podemos esperar diante de grandes mudanças, que impossibilitem categoricamente continuar levando uma vida “normal”?

A opinião pública costuma tratar como especialmente desafortunados aqueles que se deparam com incisivas alterações ambientais, patrimoniais, corporais ou sociais, sendo obrigados a mudar o lugar em que vivem, reconstruir sua estrutura material, lidar com novas (in)capacidades físicas ou com perdas de pessoas queridas, entre tantas outras situações. Causa espanto quando algum dos atingidos, em vez do tradicional pranto e desespero, mostra uma postura altiva, declarando que “a vida continua”, que “agora é começar tudo de novo”.

É claro que “começar tudo de novo” não acontece sem abalos. As grandes transformações do ser humano, assim como um terremoto, exigem deslocamentos de posição, tremores de antigas certezas e soterramentos de valores ultrapassados. Isso quer dizer que, por algum período, a alma do ser humano pode parecer uma cidade devastada até que seja possível novamente florescer algo novo naquele chão em recuperação.

Apesar do cenário desafiador, aparentes perdas e infortúnios podem se constituir em verdadeiras bênçãos, sob o ponto de vista do desenvolvimento humano. Nas palavras de Abdruschin: “Só a necessidade leva muitas criaturas humanas ao despertar e ao movimento.” Acostumamo-nos demasiadamente ao familiar e previsível, esquecendo-nos de que a finalidade de nossa passagem pela Terra não se reduz à dimensão material, aos bens, posições e relacionamentos que conseguimos amealhar.

Abdruschin ressalta que: “Só tem finalidade e proveito para o ser humano, o que não devemos tomar aqui na acepção do corpo material, aquilo que durante sua existência terrena atuou com bastante profundidade, imprimindo-lhe na alma seu cunho particular, indelével e permanente. Somente tais impressões têm influência sobre a formação da alma humana, e assim, prosseguindo, influem também sobre a evolução do espírito em seu desenvolvimento permanente.” Somente as ligações e vivências que tocaram verdadeiramente o íntimo do ser humano, para além de todas as aparências e interesses egoísticos, resistirão aos ciclos de transformação que caracterizam a existência.

As alterações da normalidade cotidiana convidam à reflexão e ao movimento, tantas vezes paralisados pela segurança e pelo conforto... Nessas situações, algumas pessoas são levadas a perceber que, apesar de todas as mudanças exteriores, há algo que permanece. Há uma essência que perdura, de onde brota a força e a confiança para enfrentar os desafios, constituindo a fonte da autêntica segurança – uma vez que aspira à eternidade.



É interessante observar como a maioria das pessoas conduz seu dia a dia: evitando, de todas as formas, cogitar que um dia tudo isso irá acabar... Isto é, que precisaremos nos despedir desse plano material. “Certamente não existe nenhum acontecimento que, apesar de sua inevitabilidade, seja sempre de novo posto tão de lado nos pensamentos, como a morte. Mas também certamente nenhum acontecimento existe tão importante na vida terrena, a não ser o do nascimento. Contudo, é bem notório que o ser humano queira se ocupar tão pouco exatamente com o começo e o fim de sua existência terrena, ao passo que a todos os outros acontecimentos, mesmo os de importância totalmente secundária, queira emprestar significação profunda.”, analisa Abdruschin.

Tomar a inevitabilidade da morte em consideração, refletir sobre a necessidade humana de um dia partir deste plano existencial, pode trazer nova luz aos acontecimentos diários. Ou será que é imprescindível passar por um “susto” – uma doença, um acidente ou qualquer outro evento que evidencie nossa fragilidade e finitude – para repensar nossas prioridades e escolhas na vida?

Flores que fenecem... O apego excessivo a aspectos transitórios parece uma atitude pueril, em face de uma abordagem mais realista da destinação humana. Cada pessoa precisa galgar degrau a degrau sua singular trajetória de desenvolvimento, com seus próprios passos e esforços... Porém, no turbilhão de estímulos do caminho, é preciso apurar o olhar para diferenciar as pétalas que o vento levará dos valores permanentes, buscando um sentido espiritualizado para a existência.



Fotos: Sibélia Zanon



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